terça-feira, 29 de junho de 2021

Tá tudo bem.

Instagram, feed, e-mails, "tudo bem, sim e você?". Nada disso fala muito sobre a gente. Não tem sentimento. Não tem a gente. São botões, são bordões, são processos. E onde está a gente nisso tudo, afinal?

A Lua em Peixes, conectada à Netuno retrógrado e à Júpiter nesses dias, nos lembra sobre nossos sonhos e nossos projetos. Qual parte de nós está indo em direção a eles? E estamos mesmo indo? Ou, estamos, apenas, vivendo no automático? 

Onde a gente encontra nosso fio da meada? Há felicidade nessa caminhada, ou a felicidade virou seu fim? Enquanto você não se encontrar com seus sonhos, ela é apenas utopia, e viver na utopia pode ser só viver no automático.



Status: automático

Liga o computador, abre o e-mail. Verifica se tem e-mail novo. Responde e aperta o atualizar. Aguarda o próximo. Ele não chega logo. Abre o instagram, envia um meme pra uma amiga. Escreve "hahaha", mas não riu tanto assim. Rola o feed pra ver as novidades do "reels". Qual a próxima dança da modinha? Que músicas estão em alta? Nada a entretém. Sai do instagram. Tem um insight sobre as políticas ambientais no Brasil. Pensa: - o Salles pediu demissão. Nada mudou. Tem vontade de escrever um artigo curto sobre suas reflexões. Abre o word, vê o cursor piscando. Lembra da agonia sobre a escrita, o rito, os argumentos. Desiste. Volta pro e-mail. Nada novo. Lembra que precisa terminar o livro da pesquisa de águas. Lembra de tese, sente agonia, respira fundo e tenta se convencer de que não é tudo isso. Não se convence. Abre o arquivo do livro e rele um parágrafo. Acha mal escrito e pensa em algumas palavras para aperfeiçoá-lo, sente preguiça. Respira fundo. Lembra da agonia de escrever a tese, de novo. Altera o parágrafo. Recebe uma mensagem no Teams da parceira de trabalho. Minimiza o livro e vai resolver questões administrativas. Passa algumas horas resolvendo as questões. Lembra do livro e sente agonia. Abre o arquivo que estava minimizado, vê o cursor piscando. Tenta ler mais um parágrafo, não encontra nada de interessante ali. Mas precisa continuar. Respira e altera uma vírgula. Falta tanta coisa ainda, pensa. Esse pensamento sufoca cada nova atividade. Dá 18h. Acaba o expediente, mas o seu expediente não acaba. Precisa terminar o livro, precisa estudar pra prova, precisa encontrar felicidade em algum lugar. Não termina. Não estuda. Não encontra. O cursor piscando é a analogia exata da sua vida. Há muito tempo no automático. Pisca, pisca, pisca. Não sabe como fazer o cursor parar de piscar.  

quinta-feira, 27 de maio de 2021

"- Alô, chama a Dôtora"

Passei quatro anos da minha vida tentando provar para mim mesma a minha intelectualidade. Será que foram mesmo só quatro? Até agora eu me pergunto, mas sei que não posso responder essa pergunta hoje. Mas me refiro aqui, especialmente ao meu curso de doutorado. Essa verdadeira empreitada. E olha que, tudo que eu não quero fazer ao chamar de empreitada é romantizar o processo. Porque a verdade, aquilo que ninguém te conta, é que esse processo tá longe de ser leve. Eu briguei comigo muitas vezes. Chorei, tantas outras. E, ao longo dos quatros anos, fui constituindo e alimentando, dia após dia, um sentimento crescente de insuficiência. Como que pode, né? Você está ali, justamente num processo de expressão "máxima da sua intelectualidade". Fulano(a) é doutor(a) - temos aqui uma frase de efeito. É certo que, em parte, o ambiente acadêmico te dá a faca e o queijo prontinhos pra você saborear a sua derrota, como a vingança, um prato que você vai esperando esfriar e come daquele jeito, frio mesmo. Mas hoje eu não quero me esquivar da minha responsabilidade e dizer: "É o sistema", porque eu sei que eu cultivei, como uma plantinha que eu regava rigorosamente às 9h da manhã, esse sentimento de dúvida, de insuficiência, de fraude. E como um vício, cada vez mais, eu duvidava de mim e afirmava, mesmo sem sentido que, aquilo não poderia ser bom ou mesmo suficiente. Passados os famigerados quatro anos, finalmente, eu fracassei de vez. O(A) caro(a) leitor(a) que me conhece, pode até indagar: "- Mas, Bia, você não pegou seu diploma?". E eu lhes respondo: "- Sim, eu peguei". Eu fui aprovada. Está lá escrito na ata de defesa. Tenho até diploma digital emitido pela UnB. Super moderno. Bonito e tudo. Mas, a verdade é que eu fracassei. Fracassei, especialmente porque permaneço sem encontrar sentido na minha intelectualidade. Que loucura pensar sobre isso. São quatro anos, quer dizer, foram quatro anos na ideia romântica de que "eu estava ali fazendo ciência" e ao final, foi atestada a minha capacidade num ato, quando todos os membros da banca, finalmente disseram aprovada. E eu digo finalmente porque realmente foi um processo teatral. Uma banca cheia de drama e enredo, como uma boa protagonista leonina que sou. Mas ao final, assinaram a tal ata. Ainda assim, eu hoje venho aqui e honestamente me pergunto: " - Essa doutora aí, assinalada neste pedaço de papel, realmente nasceu em mim?". Dizem que quando as mulheres engravidam, nasce um filho mas, não necessariamente nasce uma mãe. Aqui eu usaria a analogia pra me perguntar, será que essa doutora aí algum dia vai nascer? Ou, elaborando mais ainda, para não perder o costume da pesquisa, "- A defesa da tese faz nascer, verdadeiramente um doutor ou uma doutora?". Imediatamente penso, está aí um bom objeto de pesquisa! Obviamente, para quem tiver fôlego e estima, porque confesso que a minha anda mesmo em baixa. O fôlego, então, nem se fala. Mas quase que fatidicamente constato, pela empiria, mais e mais dificuldades de firmar esse nascimento. Até aqui tudo bem. Mas, e aí? Se essa doutora não vai nascer, por que, afinal, eu tracei esse caminho que, por vezes (ou muitas) foi tão tortuoso e até mesmo, perverso? É nesse ponto que eu olho pra trás e vejo como a gente se mutila tanto ao longo da vida. E ao mesmo tempo me pergunto por que somos tão complacentes com tantas coisa inaceitáveis vindas de amigos, familiares e até conhecidos, mas insistimos em ser tão duros com nós mesmos. Mas, enfim. Há ainda muito a elaborar e a problematizar. Dito isto, temos aqui um desabafo desarrumado. Um caos na escrita e nos sentimentos. Mas vim desnuda e sem maquiagem, porque fazia tempo que não encontrava comigo mesma neste ato que tanto amo que é escrever. Mas lhes garanto, meus queridos(as) leitores, há aqui muito sentimento e honestidade na tentativa de compensar o pouco rigor. Pra ser franca, acho que busco neste texto as pazes com a minha escrita. Ou comigo mesma. Esse relato, que demorou tanto pra sair, revela o quanto essa cicatriz ainda dói em mim. Mas ele foi fundamental. Está sendo. Agora fica a esperança de que, aos poucos eu possa ir retomando a sensação de tocar o teclado com os dedos sem culpa, sem extravios, sem peso. Que o fatídico dia, do doutoramento, que roubou de mim (ou tentou?) meu prazer pela escrita, seja apaziguado. Que a escrita volte a ser leve, despreterida, amável e essa fonte infindável e catalisadora de sentimentos. Mas não é um processo fácil (eu já disse isso, né?). Desculpe ser repetitiva. Mas foram necessários um pouco mais de um ano e uma boa conversa com meu filhote Rafa* (ou várias), para lembrar que eu sou apenas uma pessoa, com um ego e uma taça de vinho que quer, algum dia, se achar nessa bagunça contida na expressão da sua intelectualidade, da sua vaidade e da sua dificuldade de entender que sim, às vezes (ou muitas), somos mesmo insuficientes. E está tudo bem. Não ser suficiente, não ser aceita, tudo isso, faz parte do processo. Mas, ao final, preciso advertir-lhes. Não se enganem, meus amigos(as).  A academia é mesmo sedutora. Ocupar aquelas cadeiras, as cadeiras dos imortais, inquestionáveis, impecáveis, parece mesmo ser um luxo e uma massagem diária no ego. E sim, isso passa, já passou e continuará passando pela minha cabeça. A academia. Quando penso nisso, me pego questionando: "- Nossa, Bia, será que foi por isso que eu você se "lançou" em um doutorado?". Sinceramente, são tantos motivos pra um pesquisador(a) que vive de bolsa no Brasil que, fica difícil isolar os fatos. Mas, certamente, não passei ilesa nesse campo de sedução tão tentador. Tão hermeticamente arquitetado. Em algum momento, confesso, eu me vi sentadinha ali, perante uns dez ou doze alunos, completamente vidrados em tudo que eu falava. Elocubrando sobre a minha capacidade de mudar, verdadeiramente, a realidade de alguém, do nosso país, das nossas misérias, das nossas mazelas. E eu saia bem linda daquela aula, batonzão vermelho e falas perfeitamente encaixadas, pensando: "- Sou foda" (ding ding)". Cheia de si. Mas a realidade é que essa recém doutora (nem tão recém assim), continua sendo posta à prova pelos seus próprios percalços e fantasmas. Ela continua condicionada aos aceites de artigos que não recebeu. As recusas continuam doendo como doem em um aluno, em um amante, em um amigo e não, num imortal. Na verdade, doem mais do que eu gostaria. Essa recém doutora aqui continua franqueada a qualquer um, que sem qualquer mérito ou título, leia seus textos e diga em mais bom e sonoro tom: "- Não gostei, falta método", ou ainda "- Falta rigor científico". "- É muito descrito". "- Não serve para discussões aprofundadas e atuais sobre a ciência política" [...]. Por isso, lhe digo que fracassei. Um dia, talvez, eu escreva uma carta aos Programas de Pós-graduação, vestindo minha condição de doutora fracassada, mas também enganada e diga: "- Vocês estão errando muito feio na condução dos processos seletivos. Não é por falta de bibliografia estrangeira, ou aderência da bibliografia da prova de conhecimentos científicos aos temas que vêm sendo discutidos no Programa, mas vocês estão esquecendo de avisar uma coisa ESSENCIAL aos aspirantes a doutores. ESTÃO ERRANDO RUDE.  Está faltando dizer uma coisa simples, mas essencial, aos aspirantes a "dôtores" desse Brasil de meu Deus que é: "- Escuta, querido(a), a aprovação da sua tese não é a única, ou mais, a principal condição para você se tornar doutor(a), tá?. Fica ligadinho(a) nisso. O processo de "ser doutor" é íntimo, pessoal, dolorido e cheio de esquizofrenias que a academia te ajuda a alimentar. TEJE PRONTO(A)". Ao final, precisa perguntar também: "- Tem certeza que você vai topar?" E o candidato(a), na minha humilde opinião, deveria ter que assinar um formulário assinalando um X na opção "estou de acordo". A burocracia também tem seu valor, convenhamos. Um brinde aos doutores desse Brasil. Especialmente a nós, mulheres, que já carregamos tantas dores e estigmas, mas que, ao final, chegamos lá.


*meu querido amigo Rafa, doutor de si, que me ensina tanto a cada conversa carinhosa, sobre os filósofos que ele tanto ama, mas, fundamentalmente, a enfrentar as minhas dores, como um bisturi cirúrgico do bom escorpiano que é, sem deixar de ser gentil e acolhedor.