quinta-feira, 17 de outubro de 2019

As minhas águas

Artista: Maria Tiurina

Essas águas.
Condutoras de tudo que escorre.
São a vida. São as vias.
Transformam a correnteza em papel moeda.
São o sagrado.
Águas que curam. Águas que acalmam. Águas que trazem tormentas.
Abarcam deuses e deusas. Netuno à Oxum.
Não têm cor, não têm forma, mas são imensas.
Nos inundam.
Viram disputas e não matam mais a sede.
Viram acalento e refrescam o calor.
São mutáveis.
Correm e escorrem, dentro e fora de nós.
Nos brindam, diariamente, com sua existência.
Estão sendo devastadas.
Quando falta, seca.
Quando sobra, transborda.
São a epifania da criação.
"Somos todos, devedores dessas águas".


Florescer


Ilustradora: Karen Cristina

Florescer, para flor ser
E nascer de um rasgar
Da semente, que ainda virá
Mas, que já sabe o que quer ser.

Florescer, para flor ser
Constituir novas cores
Propiciar novos sabores
E depois apodrecer.

Florescer, para flor ser
E permitir se recolher no escuro
Fecundar na terra
Para se decompor em semente.

E, então, novamente, florescer para flor ser.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Desabafo sobre a saudade

Eu hoje sou só saudade.
Saudade de levar uma conversa descontraída.
Já que hoje, as conversas são permeadas de uma preocupação sobre um tempo que eu não tenho.
Saudade de poder ser apenas que eu sou, sem medo do que vão pensar sobre o que eu escrevo ou estudo.
Já que hoje, eu sou o que leem de mim.
Saudade de respirar, apenas por respirar.
Já que hoje, eu respiro para me acalmar.
Saudades de poder olhar para qualquer assunto de forma despretensiosa.
Já que hoje, eu preciso estar pronta para argumentar.
Saudade de existir, apenas para contemplar a minha existência 
Já que hoje, eu existo para ser, quem sabe, doutora.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Valorize um professor universitário

Essa semana parece que eu participei daquele programa, Big Brother. Mas foi apenas uma prova de concurso para professor universitário mesmo. “Apenas...” dá vontade de rir. Essa minha frase é reflexo daquela máxima: “- Depois que passa a gente ri”. Pois bem. Cara que loucura. Foi meu primeiro concurso. E é esse peso mesmo do primeiro. A primeira vez. É tudo muito intenso. Começa assim, abre o edital. Aí, você lê e vê se tem alguma condição de fazer aquele troço. No meu caso eu não tinha não, mas eu sou uma porta de teimosa. Precisava ter doutorado, eu ainda estou cursando, o que significa que se eu passasse, eu ainda teria que correr com a tese. Precisava saber de geotecnologias. Eu sei só que um mapa tem que ter escala. Precisava ter tempo para estudar, e de todos os requisitos, isso era o que eu menos tinha. Mas eu fui. Eu me joguei, investi o que dava. Porque como eu já havia dito, eu sou teimosa demais. Primeiro minha inscrição foi indeferida, por causa do título do meu curso de doutorado. Óbvio que seria. Nada para mim vem mole, meu bem. Mas essa lição eu já aprendi. Então pedi recurso, e consegui. Passado esse primeiro ranço de perder o valor investido da inscrição, vem o pânico da Ementa. Dez itens, dentre eles, um que tratava de “estatística descritiva”. É para rir horrores da minha cara. Mas me mantive firme. Bora. Tipo coach. E olha que eu tenho horror a coach. Um misto de horror e medo. Mas bora, e fui mesmo. Comecei a estudar, montei textos para cada item da Ementa. Vinte e três livros para estudar. Li metade deles. Três meses depois, eis que chega a tão temida semana da prova. A prova. Pai amado, como diria Tai. Mas bora. Aí vem a segunda fase desse negócio, a fase “da prova”. Que parece aqueles programas de auditório, sabe? Em que você chega num lugar e não sabe o que vai acontecer. Então, é igualzinho. Trinta e poucas pessoas numa sala, como cara de pânico, aguardando a banca para descobrir quais seriam as etapas desse negócio. Até o primeiro dia da prova você não sabe que dia será o que. Você não sabe nem qual o tema que cairá na prova. É uma coisa assim, meio Faustão, do tipo que a qualquer momento vai entrar alguém na sala e dizer: “- Bem vinda, Bianca, você está no arquivo confidencial”, aí na sequência entra toda sua família emocionada. Sem brincadeira. Pois bem, entra a banca e te entrega um cronograma, uma lista de pontos – que eu explico na sequência ­–, e o tal do barema – vou explicar também. O cronograma finalmente te faz descobrir quando será o que. Os pontos, são os assuntos que, de fato, cairão na prova escrita e didática, com base naquela ementa que mencionei, ou seja, você fica três meses estudando meio no escuro e só descobre o que cairá mesmo nas provas no primeiro dia do concurso. E o barema, é o documento que baliza como você deve montar seu currículo. Nesse primeiro dia, você também descobre que a prova será no dia seguinte. É um putz e um ufa ao mesmo tempo. Putz porque você saiu de casa só para pegar esses três documentos. Ufa porque os pontos que vão cair na prova escrita, obviamente, envolvem coisas que você não estudou tão bem, tipo pé de página. Aí você volta para casa e é um Deus nos acuda, mermão. Porque você tem menos de 24 horas para correr atrás dos temas que você nem sonhou que ia cair. Uma primeira noite mal dormida e bora para o segundo dia. No segundo dia você, você chega na sala com suas anotações como se elas fossem sua vida. É feito, então, o sorteio do ponto da prova escrita. Se eu dependesse de sorteio para resolver minha vida, meu amor, eu tava lascada. Da lista de dez pontos, quatro pontos eu precisei formular quase do zero no dia anterior. Ou seja, pensando na probabilidade, contando com a minha sorte existiam seis pontos que se selecionado, iam ser bem mais tranquilos para mim. Mas como eu disse, se eu tiver que contar com a sorte... Advinha qual ponto caiu? Um dos quatro que eu elaborei no dia anterior. Óbvio. Mas bora. Uma hora de consulta para anotar tudo que você precisava, e na sequência, três horas de prova. Nesse dia eu aprendi o que significava o verbo psicografar. Eu saí anotando aquilo tudo como se fosse a minha vida. Abreviei palavras inabreviáveis. Cômico, se não fosse trágico. Aí você volta para casa, exausto. Sem saber como foi. Tudo vai depender da banca receber bem ou não a abordagem que você endereçou na sua prova. Voltando para casa, você tem que montar o seu currículo com base no tal barema, para entregar no dia seguinte, mas, o trágico-cômico é que você só entrega se tiver passado na prova. Passar, significa conseguir nota maior ou igual a sete. No meu caso, eu estava tentado a prova para professor na UFF, vou eu, então, com meu currículo debaixo do braço na barca. O que passa na sua cabeça naquele momento é: “- foda vai ser, se eu tiver que voltar com essa porra de currículo cheio de documentos para casa.”. Mas de novo, bora. Chegando na sala, eles vão chamando, um a um, por ordem alfabética (nessas horas eu saúdo meus pais por ser Bianca e penso, rindo de canto, coitado do Ray – meu marido). Você levanta, tremendo a alma, com seu código na mão – porque a sua prova foi desidentificada, assina uma lista e olha outra lista procurando seu código e vê sua nota, ao lado da sua nota você espera por uma das duas opções “habilitado” ou  “não habilitado”. Eu tive que conferir meu código umas três vezes. Estava escrito “habilitada”. Ufa! É um ufa que vocês não têm ideia. Na hora você pensa, igual aquele vídeo da senhora passando na enchente com o filho (quem não tiver visto, recomendo muito) “- passamô, caralho”. E você não pode nem dar um grito, porque é desrespeito com os colegas. E fica um climão na sala. É horrível. Na sequência, você aguarda sentado, enviando whatsapp para a família e amigos, para entregar seu currículo e para o sorteio do novo ponto, agora para a prova de aula. De novo sorteio. Seja o que Deus quiser. Lembrando que agora era 3 x 6, estava melhor para mim. Foca nesses seis pontos aí. Tinha um ponto, meus amigos, que era o meu ponto. Expectativa a mil. Entreguei o currículo aliviada, voltar com ele na barca ia ser horrível. E vem o sorteio. Caiu um ponto ruim para mim. De novo, óbvio. Ai meus amigos, é um Deus nos acuda. Você volta para casa, tendo menos de 24 horas para preparar uma aula, para uma banca, e no meu caso, sobre um assunto que eu tinha pouquíssimo domínio. Mas de novo, bora. Mais uma noite mal dormida. Escolhas precisam ser feitas. Qual vai ser o fio condutor da minha aula? Que difícil. Você oscila entre, ah tá bem legal isso aqui, vai... e, nossa que aula merda que eu montei. No dia seguinte, você logo pela manhã, deposita a apresentação e o plano de aula. Depois tem, novamente, um sorteio para definir a ordem de apresentação. Sorteio... putz. Falou em sorteio eu já fico nervosa. Na minha cabeça eu pensava, “- poxa, eu não queria ser a primeira, mas também ficar para muito tarde vai ser horrível, passar o dia inteiro na UFF vivendo esse nervoso”. Advinha para qual horário fui sorteada? O penúltimo, para não dizer que fui a última, rs. Na hora eu pensei, “- Meu Deus, o que vai ser de mim?”. Mas, de novo, bora. A sorte é que um colega também tinha passado, e ele ficou para último. Conversamos um pouco, dividimos angústias, e ao final, ganhei tempo extra (põe extra nisso) para rever tópicos e repassar a apresentação. Passadas as infindas horas, foi chegando a minha vez. Caminhei de volta para o prédio do concurso, porque tinha passado o dia todo na biblioteca, com um misto de vontade de chorar e um levanta essa cabeça, mulher. Falar em público nunca me deixou confortável. Nunca. Nem parece que eu sou leonina. E nessas horas passa de tudo na nossa cabeça. Desde me lembrar do meu primeiro seminário na faculdade, que eu travei com um blackout tão intenso, que não conseguia falar mais nada, até o dia que fiz uma das apresentações mais tranquilas da minha vida, num congresso em Recife. Eu sabia que aquela era a minha prova de fogo, e ali era eu comigo mesmo. Entrei na sala, abri a apresentação e você ouve do presidente da banca: “Bianca, você tem 50 minutos para dar sua aula, o tempo vai começar a contar a partir de agora”. Aí parece aquela musiquinha da banheira do Gugu, sabe? Uba uba uba ê, e você catando desesperadamente o sabonete. E nessa prova aula você tem que dar de maluco. Porque você precisa fingir que está falando com alunos, fingir que é uma aula dentro de uma disciplina, e que, portanto, você está ensinando sobre um tema em continuidade a outras aulas que já vinda dando. É muito doido. É também uma luta com o relógio. Você tem que segurar a emoção, a voz, e controlar no relógio onde você “está” para saber se pode aprofundar mais ou menos determinado item. Ao final eu acabei uns 5 minutos antes. Esse controle entre a fala e o relógio foi bem difícil para mim. Teve uma hora que em estava em 30 minutos e me bateu um desespero do tipo: “Meu Deus, vou acabar muito antes”. Mas, eu bebi água, respirei e segui. Ainda assim, não cravei o tempo. Dali você pega suas coisas e sem ouvir absolutamente nenhum comentário da banca, vai embora. É um horror. Um silêncio sepulcral. Quando eu saí do prédio, eu me vi assolada num choro com um misto de desespero e um acabou, finalmente. Fiquei desesperada, primeiro com o fato de ter acabado 5 minutos antes. Na sequência porque você começa a achar que sua aula foi muito ruim. É um carrossel de emoções. Dali você volta para casa e de tudo se passa na sua cabeça. No dia seguinte sai o resultado. Até lá, meu amigo, é um Deus nos acuda de novo. Eu acordei no dia seguinte doente, exaurida e ressignificada. A experiência me ensinou a enxergar a minha capacidade de resiliência. O concurso todo, pelo menos para mim, foi muito menos sobre saber, e mais sobre a minha capacidade de resistir e me adaptar. E sobre isso eu aprendi que eu sou resiliente a bessa. Ao final eu fiquei classificada em quarto lugar. O resultado foi um mix de sensações. Confesso que eu já sabia que tinha remotas chances de ser o primeiro lugar. Mas tinha esperanças de ficar em segundo. Porque isso, além do prestígio, significava, uma ponta de esperanças, sobre um possível, ainda que remoto, aproveitamento futuro. Mas foi o que tinha que ser. O meu acúmulo em Virgem, já bastante citado aqui nos meus textos, me faz não estar tão feliz quanto eu deveria estar, por tudo. Por todas as adversidades que foram se apresentando, pela própria natureza esquizofrênica de um concurso para professor universitário. Mas eu me cobro demais. E acabei me cobrando o segundo lugar. Mas aprendi demais. Aprendi mais sobre mim, do que sobre as tais geotecnologias que tive que estudar. Aprendi que eu sou resiliente, e a partir daqui, eu selo uma nova credencial para seguir no caminho que tenho de construir todos os dias. E, por fim, mas não menos importante, o concurso me fez valorizar, ainda mais, um professor universitário. Eles são, antes de mais nada, indiscutivelmente incríveis, pelo simples fato de terem chegado lá.