terça-feira, 27 de março de 2018

Eu não queria ser uma farsa

Calaram mais uma mulher. Dessa vez não foi por uma interrupção corriqueira de um macho alfa na tentativa de traduzir o pensamento feminino (mesmo que a gente não tenha pedido tradução), ou ainda, apenas de impor sua opinião. Calaram uma mulher símbolo da luta, símbolo da resistência. Calaram porque o que ela tinha para dizer incomodava demais. Calaram porque ela, negra, favelada e lésbica, queria que nossos meninos e meninas tivessem alternativas. Alternativas justas, que não encontrassem como caminho "de bem" mais natural a submissão. Afinal, o negro favelado no Brasil, ou se conforma em ser faxineiro(a), ou se conforma em ser gari. Fora isso, é tudo hipocrisia e papinho: "- Ele poderia ter se esforçado". Esforçado como? Deveríamos nos perguntar. Se você empregador não está interessado em dar a vaga pra ele, sobretudo no lugar do branco com roupa de marca. Esforçado quanto? Se com muita sorte ele não é morto por uma bala perdida na favela onde mora. Essa mulher, que hoje não está mais entre nós, lutou por isso mas, oportunamente, a calaram. Quem calou? Por que calaram? Porque ninguém quer que o negro favelado seja alguém. Porque a sociedade se alimenta dos serviçais, desde os “Capinhas” diariamente empurrando a cadeira para que os Ministros do STF possam se sentar, até aqueles, os “inhos” e as “inhas”, carinhosamente apelidados, mas que no fundo, estão nas nossas casas lavando as nossas louças, limpando os nossos jardins. E o resto, mermão, é tudo hipocrisia. Quando calam essa mulher, de forma tão brutal e destemida, calam a todos que acreditam nas causas que ela tanto defendia. E esse tiro me acertou também. Por isso eu escrevo. "- Mas como esse tiro acertou a você? Você que é branca, privilegiada, formada?" – aposto que pensou. Sim. A mim também. Porque eu queria profundamente que todos tivessem as mesmas oportunidades as quais tenho acesso, não porque eu sou uma mera altruísta. Mas porque nós brancos somos, no fundo, todos uma mesma fraude. A fraude do sucesso com base na soberania do privilégio. Esses tiros, que acertaram essa mulher, me atingiram porque eu não queria ser uma farsa. Eu queria ter disputado o vestibular com alunos que não dividissem suas preocupações entre a prova, a fome e um amanhã de meu Deus. Mas não foi bem assim. No meu caso, eu podia apenas pensar em Biologia. E por isso eu passei. O sistema me passou. Eu sim, deveria ter me esforçado. Eu sim, sou uma privilegiada. No fundo, quando partilho da causa dessa mulher, tenho motivos egoístas, afinal, eu só não queria ser uma fraude.

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