domingo, 18 de fevereiro de 2024

Ainda dou um caldo

Eu já começo esse texto inconformada, preciso dizer. Honestamente, eu tenho apenas 36 anos, e apesar de a sociedade já me considerar uma jovem senhora, eu sinto que ainda dou um caldo. Um bom caldo, eu diria. Acontece que eu sempre tive muita enxaqueca e depois de anos convivendo com a dor e os incômodos que vêm a reboque das crises, encontrei uma neurologista que me propôs um tratamento com remédios contínuos. E esse tratamento deu super certo. Melhorei à beça e, posso dizer hoje que sou uma pessoa que tem dores de cabeça bastante esporádicas. Mas, passados alguns bons anos, me vi novamente assolada pelas dores constantes. E você já deve estar se perguntando porque que que eu estou falando de enxaqueca. Calma, eu tenho um ponto e vou explicar. Depois de muita insistência do Ray e de um acidente que escancarou a derrota que é ser uma mãe cansada - em que numa madrugada, quando levantei para amamentar o Joaquim, e eis que sento no meu óculos e quebro ele bem na haste - me rendi e agendei um oftalmologista. Afinal, ia precisar de um óculos novo e era mesmo melhor refazer o exame e ter certeza que o meu grau não mudou. Ray, por sua vez, tinha certeza que o retorno da minha enxaqueca estava associado a minha vista. Para ele, tinha algo que precisava ser ajustado. Eu, como uma teimosa disciplinada que sou, me rendi e agendei a consulta. Mas, agendei ainda incrédula. Na minha cabeça, o retorno das crises estava associado ao fato de eu estar sempre com muita coisa na cabeça, especialmente agora que o Joaquim nasceu. Chegou o dia do médico. Sempre gosto de ir a médicos no Largo do Machado, bairro próximo ao bairro onde trabalho, pois lá tem um comércio ótimo, além de ser um bairro bastante charmoso. Farmácia, feirinha, barracas de todos os tipos. Cheio de gente. Eu também procuro agendar os médicos por volta do horário de almoço e, assim, ainda aproveito para ver algumas coisas interessantes lá pelo bairro. Desci do metrô, apenas uma estação de distância depois do meu trabalho, e caminhei alguns poucos metros. Logo já avistei a barraca dos biscoitos amanteigados. Escolhi alguns para mim e outros para o Ray, já que ainda tinha alguns minutos antes do horário agendado para a consulta. Caminhei animada pra rua do consultório médico, que ficava muito próxima ao Largo. Os biscoitos me deram um animo e me fizeram esquecer, por alguns minutos, que eu estava descrente de que a ida ao oftalmologista ia resolver meu problema das enxaquecas. Chego no consultório, faço o protocolo de atendimento pelo plano de saúde, um ritual que inclui entregar a carteirinha e a identidade para recepcionista e sento para aguardar minha vez. Pego um café - e naquele momento eu percebo que, cada vez mais, não dispenso um cafézinho - e aproveito para já beliscar um biscoitinho de canela que comprei na leva de compras da barraca de biscoitos. Uma delícia. Chego a pensar que deveria ter comprado alguns gramas a mais, afinal, o preço era ótimo. Eis que o médico, doutor Leonardo, abre a porta e me chama. Entro, meio enrolada entre a sacola de biscoitos, a bolsa e o óculos remendado com cola do tipo super bonder. Ele me pergunta como eu estava, eu procuro o exame antigo na bolsa, feito por ele também, e entrego explicando que meu óculos quebrou, mostro onde quebrou e a colagem que fiz - algo que depois achei um tanto desnecessário- e digo que oportunamente gostaria de fazer um check up antes de mandar fazer um novo óculos. Ele ouve atentamente e na sequência me pergunta se eu estou enxergando bem ou se tenho alguma queixa. Ai nessa hora, sinto o Ray como um duende aparecendo no meu ombro e dizendo: “- Bia, fala das enxaquecas”. Resisto um pouco, mas a imagem dele reaparece como num filme de sessão da tarde e decido, então, relatar. Narro que tratei a enxaqueca, mas que senti que ela voltou e friso que meu marido acha que poderia ser algo relacionamento a minha vista, mas que eu não acho que seja. Faço questão de dizer que não acho que seja. Nessa hora, percebo que a implicância com o marido que estava tentando cuidar de mim se faz presente mesmo longe dele e penso: será que estou ficando uma jovem senhora rabugenta? Na sequencia, doutor Leonardo me pergunta quanto anos eu tenho e eu respondo que estou com 36. Ele me olha um tanto surpreso, e penso: tá vendo, ainda dou um caldo, ninguém diz que eu já tenho 36. Ele me convida, então, pra ir para as máquinas de exames. O consultório dele é muito bem equipado, algo que gosto muito. Faço os exames inicias para aferir a pressão dos olhos. Tudo certo. Chega a hora mais temida por alguém que, apesar de ser uma jovem senhora, é embananado, que é a hora de sentar na cadeira e ler as letras no fundo da sala. Sempre me atrapalhei demais nesse exame até encontrar o Dr. Leo, que parece ter um maior traquejo para conduzir os pacientes confusos, como eu. Ele, inclusive, corrigiu um óculos meu que fiz com outro oftalmologista em que acabei errando o grau para mais. Santo Dr. Leo. Sento, ele me pede para tirar os óculos e ler as letras no painel ao fundo da sala, projetadas de um computador. Rapidamente respondo que sem os óculos não consigo ler absolutamente nada. Ele sempre faz isso, acho que é para testar se alguma coisa melhorou em relação ao grau antigo. Mas nessa hora, lembro bem do peso dos 36 anos, pois nada melhorou. Ele coloca, então, o grau correspondente ao meu óculos na máquina e me pede pra ler a letras projetadas na parede. Leio tudo, tranquilamente. Meu principal parâmetro são as letras mais miúdas. Quando consigo lê-las, sei que está bom. Ele aumenta e diminui os graus entre diferentes lentes e chegamos a conclusão de que o grau para longe, a tal da miopia, permaneceu o mesmo. Ai, pensei: tá vendo, Ray, te disse, não era isso. Ali era o meu momento. Mas, quando ameaço a levantar, ele me pede para esperar e pega um papel acartonado com uma tela de celular impressa nele e coloca bem perto do meu olho, com o mesmo grau para longe na lente da máquina e me pergunta: "- Está dando pra ler bem assim, ou está embaçado?". Nessa hora, sinto um risinho no canto da boca do médico. O desgraçado já sabia a minha resposta. Olho em pânico para o papel e sinto as letras um pouco embaçadas. Aquele procedimento era novo e eu estava completamente abismada. Não esperava por aquele golpe da vida. Respondo meio gaguejando: "-Tá um… Bom… É... Tá um pouco embaçado.". Ele muda a lente e fala: “- Assim melhorou?”. Que ódio. Melhorou muito. Respondo murcha: “- Melhorou”. Dali ele testa mais umas duas outras lentes e chegamos a conclusão que a primeira era mesmo a melhor. Ele levanta as lentes da máquina, me olha e diz: "- É, Bianca, você está com a vista cansada. Você já tem 36 anos, isso é perfeitamente esperado. Ainda não chega a ter a necessidade de um óculos multifocal, mas você precisa de uma lente especial para te dar um conforto maior. É, por isso, que você está tendo essas dores de cabeça". Eu só captei o multifocal de tudo que ele disse, e respondo já em pânico: "- Olha, Dr. Leo, eu sou muito embananada e não tenho condições alguma de usar óculos multifocal. O senhor vai precisar me dar duas receitas separadas, uma para cada óculos". Ele responde: "- Calma, Bianca, não é multifocal ainda. É uma lente especial, não tem aquilo de olhar para baixo ou para cima.". Eu penso: ainda? Ainda? Esse cara não pode estar falando sério. Meu Deus. A gente se dirige para a mesa dele novamente, ele explica que é uma lente da categoria monoplus. Na hora eu pensei: vai ser uma fortuna. Ele frisa a importância de fazer essa lente para o meu caso. E explica novamente que meu grau para longe não mudou, mas que eu já tenho sinais de vista cansada. Vista cansada. Eu senti que nessa hora não consegui evitar e bufei alto. Ele riu e falou: "- Fica calma, é assim mesmo". Pego a receita, agradeço com um sorriso meio murcho e saio, indignada. Antes mesmo de sair do prédio do consultório eu já pego o celular e mando um áudio para o Ray: "- Tá satisfeito? Tô com vista cansada e vou ter que fazer um óculos especial.". Como se a culpa fosse dele. Mas, eu precisava desabafar. Ray ri, já conhecendo bem a mulher que tem e diz: - "Calma, amor, você ainda dá um bom caldo". Olho pra tela, penso em responder, mas sigo em direção ao Largo para pegar o metrô e voltar ao trabalho. Termino a conversa com ele ainda irritada, sabendo que não havia mais nada a fazer a não ser aceitar os desígnios de ser uma jovem senhora. Confesso que naquela hora duvidei se ainda dava mesmo um caldo. Será? Era a pergunta que ecoava. Algumas semanas depois, eis que o óculos novo chegou. Um mundo novo se abriu. Dr. Léo estava certo. Era mesmo vista cansada. Escrevo essa crônica já com os óculos com a tal lente especial e confesso que estou muito contente em perceber que estou enxergando bem melhor de perto, e que, apesar da vista cansada e do peso de ser uma jovem senhora,  ainda tenho muito caldo para dar. Viva a lente monoplus. 

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