quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Xangô, me perdoe

  

E mais uma vez a vida veio evidenciar o quanto um diploma de doutorado deixa a desejar no mundo real. E hoje, eu trago aqui uma prova de que o doutorado também deixa bastante a desejar no mundo espiritual. E talvez isso seja ainda mais preocupante. Fofoca que envolve espiritualidade, ou melhor dizendo, a boa e velha macumba, todo mundo gosta, né? Então, vamos a história. Tudo começou com um recado vindo de uma entidade. Pra quem não sabe, entidade são espíritos que, por vezes, incorporam nas pessoas para trazer recados, avisos ou conselhos. Importante ressaltar que em nenhum momento pedimos recado algum, mas, o recado foi dado por uma vovó, e eu, que não sou boba nem nada, achei prudente prestar atenção. Afinal, tu vai duvidar do santo? Porque eu não vou. Desse recado eu parei em dois centros. E nem estou falando do centro do Rio, mas centro de rituais. Mas, vou me ater a vivência no segundo centro, que foi mais emocionante, para dizer o mínimo. Depois do tal recado, e de uma sucessão de fatos esquisitos na nossa vida, Ray, parou num jogo de Búzios, que se desdobrou na necessidade de participar de um ritual. Um não, vários. E os recados que recebemos da primeira vez juntos e, na segunda vez quando o Ray foi sozinho no jogo de Búzios, envolvia a mesma coisa: nosso casamento. Por isso, os dois tinham que participar do que estava por vir. Acordamos cedo, afinal, centro bom é centro longe. O centro ficava localizado depois do centro de Nova Iguaçu, outro município no estado do Rio de Janeiro. Pelo menos duas horas de viagem. Chegamos lá, fomos muito bem recebidos e convidados a entrar e esperar. Na sequência, fomos avisados que o pai de santo já vinha. Demorou a bessa e nada do pai chamar. Minha sogra, que nos acompanhou, ciente da nora que tem, aproveitou o tempo livre que tínhamos pra ir me brifando: “- Minha filha, vai ter momentos em que você vai ter que chutar, aí você tem que imaginar que está chutando tudo de ruim da sua vida.”. Escutei e acenei com a cabeça: “- Deixa comigo.” - afirmei. Também disse que depois do ebó - já explicarei do que se trata com detalhes – eu teria que pular por cima das coisas, sem olhar pra baixo. E frisou que não olhar para baixo era muito importante. Acenei novamente e anotei tudo mentalmente. Chutar e pular sem olhar pra baixo. Tranquilo, pensei. Dali, o pai chamou. Joguei Búzios. Búzios é um jogo de adivinhação que é guiado por umas conchas, os tais búzios, tipo conchinhas do mar. Pelo que pude me informar, a lógica do jogo de Búzios envolve a matemática de entender quantas contas caem viradas pra baixo ou pra cima e sua disposição na mesa. Quando li isso achei o máximo. Mas, voltando aos Búzios, ao final do jogo o pai me disse: “- Será feita uma oferenda, um ebó e uma firmeza da sua cabeça”. Concordei e acenei positivamente: “- Claro, pai”. Respondi, sem fazer ideia do que se tratava, mas como já expliquei em outras histórias, professor tem esse cagoete. Ele afirma as coisas sem fazer ideia do que se trata, e então, só depois ele resolve os desdobramentos das suas afirmações impensadas. Depois de agir com normalidade para aquele universo completamente novo, repeti mentalmente comigo: chutar e pular sem olhar pra baixo. Moleza. Fomos pro primeiro ritual, e nele minha ignorância já ficou completamente escancarada. Ao chegar no local onde seria feito, dentro do terreiro mesmo, graças a Deus, porque colocar uma farofa na esquina tá longe de ser uma das minhas habilidades, tirei o chinelo em sinal de respeito e fechei os olhos. Já cheguei tomando esporro do pai de santo, que falou firme “- Abre o olho!”. Opa. Abri o olho e a moça que estava o ajudando, muito gentil, riu de canto e continuou cantando umas músicas em iorubá, língua africana muito curiosa. E eu quietinha, a essa altura, já sem entender uma palavra do que estava sendo dito ou feito. Do nada, ela vira e fala pra mim: “- Vai, agora chuta”. Pensei imediatamente: isso aqui eu sei. Chutei com tudo. Na sequência, ela me diz: “- De novo!. Eu chutei novamente, com a mesma perna, óbvio. Sou destra, ué. Dali, pela expressão dela, eu já senti que tinha fugido do script. Mas ela, me olhando com um olhar meio piedoso, calou o que passava na sua cabeça e disse: “- Pronto, minha filha, vai pra lá” - quase me empurrando e apontando o novo lugar que eu deveria ficar. Depois, parados num canto, o pai pergunta, apontando pro Ray: - “Fala seu nome todo”. Ele responde: - “Ray Pavão”. Na sequência, o pai vira pra mim e fala: “- Agora o seu”. Eu, que não sou boba nem nada, acompanhei o relator, e falei meu nome de guerra também: “Bianca Medeiros”. Acabamos o primeiro ritual. Ufa. Será que passei? Pensava. Minha sogra, que assistiu a tudo de longe, já me chama rindo: “- Minha filha, eu não te falei que era pra chutar?”. E eu imediatamente me defendi: “- Ué, mas eu chutei!”. Ai ela, rindo: “- Com as duas pernas, Bia”. E depois completa: “E vocês, cara, ao invés de dar o nome todo, informam o nome de guerra. Não pode isso gente, é o nome TODO. Nessa hora eu inevitavelmente penso no doutorado: serve pra nada, cara, eu falo. Mas, também passo imediatamente a me preocupar com o próximo desafio, afinal, agora eu preciso gabaritar o ebó, para me redimir com os erros na oferenda. Preocupada com os rumos que tudo estava tomando, muitas coisas passam na cabeça a essa altura: meu Deus, será que vão aceitar a oferenda mesmo eu tendo errado as coisas? Será que existem muitas Biancas Medeiros? Será que vão me achar? Eu deveria ter dito Medeiros Pavão. É muito mais específico. Nossa, que mole que eu dei. Tudo culpa do Ray. Espero sinceramente que aceitem. Bom, mas eu tinha que continuar. Esperando o ebó terminar de ser preparado, Ray foi na frente, porque ele é o mais velho e assim manda o rito. E eu não podia ficar olhando muito o que estava sendo feito com ele, pois dentro da crença, o ebó é um ritual de limpeza e existem muitas energias carregadas ali. Esperei minha vez mentalizando: pular, sem olhar pra baixo. E, então, chegou minha vez. Frio na barriga, mas vamos. Para participar de um ebó, o pai te explica um dia antes, que você precisa estar com uma roupa velha, pois ao final, você vai jogar aquela roupa fora com todo o carrego que sobra depois do ebó. Gente, o ebó é uma humilhação. Você caminha até um local dentro do terreiro que está todo marcado no chão, com traços e desenhos de giz. A mesma moça que me mandou chutar, me pediu para parar na frente dela, em cima de uma estrela desenhada no chão e ela ia recebendo as comidas pela lateral esquerda dela, que vinham sendo repassadas por outras moças que estavam ajudando. O pai participava cantando. Quando as comidas e os preparos chegavam nela, ela ia passando em mim. E aqui a gente está falando de bolinhos de todos os tipos. Pensa na moça esfregando bolinho na sua cara. Do nada eu sinto um treco na minha cabeça e penso; porra, tacar terra é sacanagem. Depois descobri que era uma farinha. Toca a vir bolinho. Daqui a pouco eu olho, ela está metendo um peixe na minha cara. Peixe na cara, peixe no peito, peixe na perna. E passava todas as comidas no corpo todo, em pontos específicos e só depois, deixava os restos caírem no chão. E ali ia se formando o tal do carrego. E eu curiosa, às vezes, olhava pra baixo. E nisso, toma-lhe mais esporro: “- Olha pra cima”, dizia a moça puxando meu queixo pro alto. A àquela altura, eu devia estar com um cheiro pavoroso. E pensava, agora foi, né? Toca a vir mais terra. E eis que sinto um ploc na cabeça. E sinto um líquido meloso escorrendo. Sim, ela quebrou um ovo na minha cabeça. Ali, senti que a humilhação estava completa. Na sequência vem pipoca. Ai, na hora pensei: Ahhh porra, esse é o famoso banho de pipoca do bordão que brincam. Entendi. Já posso dizer que tomei banho de pipoca. Finalmente, quando já não tinha mais nenhuma comida pra esfregar em mim, ela vira e fala: “- Consegue pular?”. Àquela altura eu já até tinha me esquecido do pulo. Mas, quando ela disse, pensei: agora é meu momento. Meus amigos, eu dei uma olhadinha rápida pra baixo, só pra ter uma dimensão mais ou menos do tamanho de coisas que tinha que pular. Eu pensava: se eu cair em cima dessa merda eu ia ferrar com a minha vida pra sempre. Imagina, eu não podia nem olhar pra baixo, quem dirá cair naquilo. E fora que eu já tinha feito a oferenda sem dar o nome direito, enfim, era tudo ou nada. Eu posso dizer que respirei fundo e pulei com a minha vida. E aí, quando aterrissei, ela me olha nos olhos e fala: “- Isso!!!”. Abri um sorriso e pensei: gabaritei o ebó. Ufa. Dali, suja, podre e descabelada, você segue pra tomar um banho no banheiro do terreiro. Quando eu vou caminhando em direção ao banheiro penso: meu Deus, que doutorado de merda, eu nem me liguei que precisava ter trazido uma toalha. Abro a água, um gelo. Respiro fundo, olho pros lados, e penso de novo: porra, esqueci xampoo e sabonete. Como que eu vou tirar isso tudo do meu cabelo? Esfrego o cabelo na água gelada, uma moça bate na porta: “- Olha, o pai falou que o sabonete que você vai usar é esse daqui”. Era um sabonete preto. Agradeci duas vezes e pensei: ah nem fui tão errada assim, o sabonete era específico, eles também devem me trazer uma toalha depoisUfa. Esfreguei o cabelo, nada de sair aquela quantidade de comida. Quando fechei o chuveiro e ameaço a colocar a calcinha, vem a moça novamente: “- Acabou o banho?”. Respondi otimista, afinal, estava certa de que a toalha viria: “Acabei sim”. Ela responde: “- Tá, não coloca a roupa ainda, que vamos trazer o banho”. Tirei o pé da calcinha igual criança quando está fazendo besteira, bem rápido pra ninguém ver que ia me vestir antes do outro ritual e pensei: ué, banho? Achei que estava tomando banho... Mas, num rompante de sensatez entendi: ah, banho de ervas. Claro. Hum, vai ter banho de ervas. Beleza. A moça entra com uma bacia na mão cheia de ervas e um pouco de água e taca na minha cabeça. Confesso que fiquei um pouco irritada, porque foi difícil tirar as coisas do meu cabelo. Mas, como o cheiro era maravilhoso, me conformei. Passei do ovo para as ervas. Era a minha redenção. Na sequência a mesma moça fala: “- Pode colocar a roupa agora”. Aí saquei que não ia rolar toalha mesmo. Mas, eu já tinha passado por tanta coisa, que me vestir molhada era o de menos, gente. E, àquela altura, eu só pensava, meu pai amado, doutorado? Que doutorado, gente. Eu não sabia dar o nome todo na oferenda. Dali, o pai me levou para a firmeza na minha cabeça. É uma expressão usada para um ritual que te ajuda a fortalecer os laços espirituais com os orixás. Nessa eu tinha menos margem para erro. Fiquei deitada num quarto, em forma de conexão com aquela energia. Depois disso, o pai te levanta, que é quando ele te autoriza a ir embora. Sai daquela experiência grata, sem ter deixado meu olhar de pesquisadora de lado em nenhum momento, mas certa de que ele só me serviu mesmo para narrar a experiência em forma de crônica para vocês, afinal sigo na dúvida se aquela oferenda vai surtir efeito e se as entidades vão achar a Bianca certa.

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